Foto: Google
As circunstâncias podem ser objetivas (ou materiais ou reais) e subjetivas (ou pessoais). Aquelas relacionam-se com os meios e modos de realização do crime, tempo, ocasião, lugar, objeto material e qualidades de vítima. Pessoais ou subjetivas são as referentes à pessoa do participante, sem conotação com a materialidade do delito, como os motivos determinantes, suas condições ou qualidades e relações com a vítima ou com outros concorrentes. Algumas estão previstas na Parte Geral do Código (agravantes, atenuantes e causas de aumento ou de diminuição da pena). As agravantes, quando descritas na Parte Especial do Código Penal, recebem a denominação de causas especiais de aumento de pena e qualificadoras. No homicídio, são qualificadoras as descritas no § 2.º do art. 121 (emboscada, motivo torpe, traição etc.).
Suponha-se que dois sujeitos, em co-autoria, cometam um homicídio. Um age por motivo torpe, razão desconhecida do outro. O que realizou o fato sem motivo torpe responde também por homicídio qualificado? Em outros termos, a qualificadora pessoal do motivo torpe no homicídio é comunicável no caso de concurso de pessoas?
Há acórdão recente do Supremo Tribunal Federal respondendo afirmativamente. Consta da ementa: "Homicídio qualificado – motivo torpe – co-autoria – qualificadora, elementar do crime que se comunica, sempre, ao co-autor, independentemente de ter ou não ingressado na esfera de seu conhecimento". Tratava-se de uma hipótese de crime praticado por dois sujeitos, tendo um deles agido por vingança, circunstância, segundo a defesa, desconhecida do parceiro. Argumentou a decisão do Pretório Excelso: "As qualificadoras do homicídio são elementares do crime e se comunicam, sempre, ao co-autor, pouco importando que tenham ou não ingressado na esfera de seu conhecimento". E, lembrando a lição de NÉLSON HUNGRIA, arrematou: "A incomunicabilidade das circunstâncias pessoais cessa quando estas entram na própria noção do crime. No homicídio qualificado, por exemplo, as qualificativas de caráter pessoal, ex capite executoris, se estendem aos partícipes".
Esse entendimento merece três considerações: 1.ª) as qualificadoras do homicídio não são elementares do crime e sim circunstâncias legais especiais; 2.ª) na hipótese de concurso de pessoas, a circunstância do motivo torpe não se transmite ao fato do parceiro insciente; 3.ª) a lição de NÉLSON HUNGRIA não se presta à vigente legislação penal brasileira.
No tema da comunicabilidade e incomunicabilidade de elementares e circunstâncias, anotando que a participação ou co-autoria de cada concorrente adere à conduta e não à pessoa dos outros integrantes da empreitada criminosa, a doutrina apresenta as seguintes regras, nos termos do art. 30 do CP: 1.ª) não se comunicam as condições ou circunstâncias de caráter subjetivo; 2.ª) a circunstância objetiva não pode ser considerada no fato do partícipe ou co-autor se não ingressou na esfera de seu conhecimento; 3.ª) as elementares, sejam de caráter objetivo ou pessoal, comunicam-se, desde que tenham integrado o seu conhecimento.
No caso de co-autoria ou participação, os motivos de um concorrente não se estendem aos fatos cometidos pelos outros que não os conheciam (1.ª regra). Quanto às circunstâncias objetivas, elas só alcançam o co-autor ou partícipe se, sem ele ter praticado o fato que as configura, houverem integrado o seu dolo (2.ª regra). Da mesma forma, as elementares do tipo, sejam objetivas ou pessoais, somente se transmitem ao fato do participante quando tiver sido por ele conhecido o seu conteúdo (3.ª regra).
Tomemos, no homicídio, duas qualificadoras, uma objetiva e outra subjetiva (emboscada e motivo torpe, respectivamente). Se "A" determina a "B" a morte de "C" mediante paga, sendo a emboscada, forma de execução do fato, absolutamente imprevisível e desconhecida do mandante, a este não se estende a qualificadora objetiva. E se, em exemplo diverso, um age por motivo torpe, desconhecido do outro? Só o primeiro responde pela forma qualificada.
O art. 30 do CP não pode ser aplicado isoladamente, convindo observar: 1.º) o co-autor ou partícipe responde pelo crime "na medida de sua culpabilidade", nos termos do art. 29, caput; 2.º) a Constituição Federal de 1988 e o CP, na reforma de 1984, adotaram o princípio da culpabilidade, proscrevendo a responsabilidade penal objetiva; 3.º) de acordo com o art. 19 do CP, "pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente".
A culpabilidade, que significa censurabilidade, serve de critério diretivo na dosagem da pena concreta. O Código Penal, no concurso de pessoas, embora mantendo a teoria unitária, segundo a qual há um só delito para todos os participantes, mitigou-lhe o rigorismo monístico, rezando, na parte final do caput do art. 29, que todos incidem nas penas cominadas "na medida de sua culpabilidade". Esse princípio resulta da regra de que a graduação da pena é medida pela culpabilidade: o crime é comum a todos; a culpabilidade, porém, deve ser apreciada em relação a cada um. Como dizia MAURACH, "sempre que sejam vários os que tenham participado do fato, cada um deve ser castigado de acordo com a sua culpabilidade, sem atender à culpabilidade do outro". No fato questionado, se um homicida agiu por vingança, motivo desconhecido do outro, o juízo de censurabilidade não pode ser, em face dessa circunstância, o mesmo para ambos, sob efeito de se desprezarem os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena.
A CF de 1988, no art. 5.º, LVII, instituindo o princípio do estado ou presunção de inocência, impede a responsabilidade "pelo fato do outro", que se inclui na proscrita responsabilidade criminal objetiva, de maneira que uma circunstância que agrava a pena de um autor não pode se estender a outro. Por sua vez, a Lei n. 7.209/84, que instituiu a chamada "Reforma penal de 84", consagrou o princípio constitucional da culpabilidade, proibindo presunções legais e responsabilidade criminal objetiva. Não se admite mais que alguém responda pelo que não fez ou que tenha agravada a pena por um motivo que não era seu.
De acordo com o art. 19 do CP, "pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente". Esse dispositivo, que extinguiu, nos delitos qualificados pelo resultado, a responsabilidade penal objetiva (responsabilidade penal sem dolo e culpa), é aplicável a todas as causas de aumento de pena. A parte final dele, entretanto, que admite culpa, não incide sobre as qualificadoras, que devem ser cobertas pelo dolo.
A lição de NÉLSON HUNGRIA, invocada no acórdão, no sentido de que a qualificadora do motivo torpe é comunicável, ainda que dele inscientes os outros participantes do delito, que já era criticada em seu tempo, tinha fundamento no texto do antigo art. 118 do CP italiano, hoje alterado, segundo o qual, no concurso de pessoas, as circunstâncias reais ou objetivas sempre se comunicam entre os fatos dos participantes, sejam ou não de seu conhecimento. Como dizia EUCLIDES CUSTÓDIO DA SILVEIRA, a ilação de Hungria "deve ser recebida cum granum salis, pois, em se tratando de circunstância subjetiva acidental, não elementar ou constitutiva de um tipo delitivo autônomo, não pode comunicar-se ao partícipe que a ignorava ou não tenha agido por igual motivo próprio". Na mesma linha de discordância, COSTA E SILVA observava "haver aí uma responsabilidade sem culpa ou objetiva", seguido por MAGALHÃES NORONHA e BASILEU GARCIA. HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, no relatório do Grupo Brasileiro apresentado ao IX Congresso Internacional de Direito Penal, realizado pela Associação Internacional de Direito Penal (Haia, 1964), após dizer que, "em nosso Direito, a distinção entre circunstâncias de caráter pessoal (subjetivas) e circunstâncias objetivas" é essencial, propôs aos congressistas a seguinte questão: "No Direito Penal moderno não pode haver pena sem culpabilidade. A responsabilidade objetiva que algumas leis prevêem, relativamente às circunstâncias agravantes, como faz, por exemplo, o vigente Código Penal italiano, é intolerável. É indispensável fixar como princípio básico fundamental o de que não pode ser considerada a circunstância agravante se não houve culpa em relação à mesma". E cumpre observar que NÉLSON HUNGRIA estava se referindo às circunstâncias objetivas, enquanto no acórdão cuidava-se de uma qualificadora de natureza pessoal ou subjetiva (motivo torpe).
Dolo é a vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo. Apresenta dois momentos: intelectual e volitivo. Enquanto este impulsiona a realização da conduta, aquele deve abranger as características do tipo, i. e., conhecimento da conduta e das circunstâncias previstas na incriminação do fato, o que a doutrina denomina dolo abrangente. Cuidando-se de circunstância qualificadora pessoal, como o motivo torpe no homicídio, apresenta-se uma circunstância subjetiva do tipo. No caso de co-autoria, tendo agido por esse motivo o mandante, o dolo do parceiro também deve alcançar o móvel do delito, sob pena de se aceitar a responsabilidade penal objetiva. Nessa hipótese, ensinava BASILEU GARCIA, "é preciso saber se a circunstância" "foi abrangida pelo seu dolo". Caso contrário, arrematava MAGALHÃES NORONHA, "é mais uma consagração da responsabilidade objetiva. Para evitá-la, estamos que se deve atender aos princípios da causalidade" "psíquica".
Não discrepa a doutrina posterior à reforma penal de 1984, entendendo que, no homicídio, as qualificadoras referentes aos motivos determinantes, como o torpe, não se comunicam aos co-autores e partícipes inscientes.
A posição que ainda agasalha a responsabilidade penal objetiva é um retrocesso, lembrando um ditado chinês que diz: "Quando uma centopéia morre na parede, ela não cai". Parece que a responsabilidade penal objetiva tem mil pernas.// Fonte: Damásio de Jesus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário