segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Há grampos até nas estradas


Brasília, 07/09/2008 - No tempo em que grampo era só um arame de prender cabelo, uma geração fixou uma imagem romântica dos patrulheiros das estradas. Era a época do Carlos, personagem principal de O Vigilante Rodoviário, primeira série televisiva do país. Em episódios que fizeram sucesso nos anos 60, o patrulheiro Carlos combatia ladrões e malfeitores nas estradas paulistas ao lado de seu parceiro, Lobo, o pastor alemão que levava no banco do carona de seu Simca Chambord, um dos carros mais possantes daquele período. Subordinada ao Ministério da Justiça, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) é hoje uma corporação com quase 10 mil policiais, orçamento anual de R$ 2 bilhões e a responsabilidade de fiscalizar 61.000 quilômetros de estradas. Seu papel, segundo a Constituição, é fazer o patrulhamento ostensivo das rodovias federais. A corporação, porém, tem extrapolado suas funções.
Uma investigação da CPI dos Grampos na Câmara dos Deputados revela que a Polícia Rodoviária Federal também aderiu às escutas telefônicas. No Memorando no 185/08, a Coordenação de Inteligência da PRF informou à CPI que não sabe o número de interceptações que fez desde 2002, quando, sob o comando do general Álvaro Henrique Vianna de Moraes, a PRF passou a fazer gravações telefônicas.
Nos 14 casos relatados pela direção da corporação, há ofícios de delegados de polícia e promotores requisitando grampos telefônicos. "A iniciativa desses procedimentos foi do Ministério Público ou da polícia. Imagino que, simultaneamente, tenham pedido autorização à Justiça, porque senão seria ilegal", afirma o inspetor Marcelo Paiva, chefe de gabinete da direção da Polícia Rodoviária. "Existe um marco legal que permite à PRF armazenar dados." Procuradores ouvidos por Época afirmam que requerer o grampo antes de uma decisão do juiz é uma inversão das regras processuais.
Em depoimento à CPI, Hélio Cardoso Derenne, diretor-geral da PRF desde o primeiro mandato do presidente Lula, afirmou que a corporação não tem aparelho de escuta. "O que temos são aparelhos de armazenamento de dados. E esse, somente esse equipamento, esse você compra... Qualquer cidadão brasileiro pode comprar", disse Derenne. Documentos a que Época teve acesso desmentem essa versão. Em 2006, o núcleo de inteligência da Polícia Rodoviária em Mato Grosso do Sul comprou, por R$ 177.900, três plataformas de comunicação telefônica da Wytron Technology Corporation, uma empresa de Belo Horizonte, Minas Gerais, cujo dono é Tao Hua, empresário chinês especializado em vender aparelhos de gravação telefônica. No Espírito Santo, os negócios de Tao foram investigados por uma CPI da Assembléia Legislativa. Ele vendia máquinas de grampo até para empresas privadas.
De acordo com as exigências da própria PRF, esse equipamento grampeia chamadas telefônicas de redes fixas, de celulares e de telefones por satélite, além de transmissões de fax, mensagens de voz e de texto. Começa a gravar assim que o telefone-alvo é tirado do gancho, antes mesmo da discagem. Inspetores ouvidos por Época dizem que, em pelo menos outros quatro Estados, há aparelhos semelhantes em núcleos de inteligência da PRF. A direção da PRF diz que um deles é usado apenas para fazer varreduras antigrampo.
No Congresso, a CPI dos Grampos apura informações sobre a existência de outros equipamentos de escuta não reconhecidos pela PRF. "Já recebemos denúncias de que a Polícia Rodoviária dispõe até de maletas para fazer grampos de celulares. Ela está fazendo um trabalho ilegal", diz o deputado Nelson Pellegrino (PT-BA), relator da CPI.
A Constituição estabelece que apenas as polícias judiciárias (Polícia Federal e as policiais civis nos Estados) podem fazer inquéritos criminais e, em cumprimento à ordem judicial, gravar conversas telefônicas. A justificativa peculiar da direção da PRF para seus grampos é: quem faz a interceptação telefônica são as operadoras de telefonia - a PRF apenas recebe o conteúdo das conversas e transcreve os diálogos. É justamente isso que deveria ser sigiloso.
Os equipamentos da PRF fazem, em menor escala, exatamente o mesmo que o guardião da Polícia Federal, o mais famoso aparelho de escuta usado no Brasil. "O que está ocorrendo na Polícia Rodoviária é da maior gravidade. Ela não tem competência legal para fazer interceptação telefônica nem para comprar equipamentos de escuta", diz o deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da CPI. "Estranho que o ministro da Justiça, Tarso Genro, ainda não tenha mandado recolher esses aparelhos."
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cézar Britto, também critica Genro: "O ministro tem de explicar por que, de maneira ilegal, a Polícia Rodoviária compra aparelhos e faz grampos. De acordo com a Constituição, seus instrumentos de trabalho são radar para conter velocidade e bafômetro. Época procurou Tarso Genro ao longo da semana, mas ele não falou sobre o assunto.
Para Itagiba, há procuradores e juízes que acobertam atividades ilegais na PRF. "Essa é a demonstração mais clara de milícias no Estado a que se referiu o presidente do STF, Gilmar Mendes. A CPI vai cobrar responsabilidades", diz.
Na ótica da Polícia Rodoviária Federal, participar de investigações criminais e gravar conversas telefônicas é poder. O objetivo é reduzir a distância em relação à Polícia Federal, corporação que atrai os holofotes por suas ações de combate à corrupção e ao crime organizado. A polícia das estradas quer crescer. Deve aumentar seu contingente em mais 3 mil servidores, adquirir armamentos mais modernos e reforçar sua frota aérea, que já conta com dez helicópteros e um avião. Quer, enfim, ser polícia. E, pelo jeito, não só nas estradas. // Fonte: Revista Época.

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